Uma flor

Uma flor. Pode ser uma flor. Há poucos dias, sonhei que estava na antiga casa. Era uma tarde, sei que era uma tarde pelo sol que entrava lânguido pela janela. O silêncio, os tapetes e a dupla de sofás vermelhos, impassíveis. O lustre de vidro pendia. Diria ser uma pintura, De Chirico. Atrás de mim, o espelho refletia tudo, a poeira que dançava na tarde. Percebo: é um sonho. “Eu posso tocar, eu imagino tão forte que posso tocar em tudo o que está aqui. E, no entanto, isso é um sonho. E, no entanto, não é real”. Nada disso existe mais, completo ao acordar. Nada mais.

Tem ocorrido de, logo antes de dormir, eu acreditar que estou lá, em plena casa antiga. Projeto de olhos fechados o quarto se abrindo inteiro à minha frente, onde há apenas a parede branca. Vejo mesmo as duas graves janelas na noite, deixando a luz diáfana e distante penetrar por entre as frestas da veneziana. Imagino ouvir os sons da rua deserta, um gato seresteiro, o vento agitando as árvores sempre copadas.

A flor é o que se foi. Comprei uma kalanchoe na promoção. Flores de um amarelo vibrante, mas algumas já secando. Semanas depois, nada mais. Sol, água, adubo, pergunto: o que precisas? Perdeu as folhas e aos poucos uma mancha escura se alastra pelo seu corpo. Na semana chuvosa, os fungos. Depois, o lixo. Plantei uma lavanda no lugar. Aproveitou a terra adubada.

Pode ser uma flor que eu tenha visto na volta para casa, uma outra flor, agora de um dourado ofuscante, pendurada à árvore como um colar. Pode ser ainda outra flor, a tripla flor da buganvília se abrindo em pleno outono. Sonho que voltei à casa antiga. Procuro o que foi esquecido no fundo das gavetas. Uma camiseta, livros, pomadas e remédios e um conjunto de canetas.

Na exposição da Elida Tessler, as palavras “reconhecer” e “perder”, as duas vizinhas, o átrio de janelas fechadas já abafado. Palavras que se espalham pelas paredes, em pratos, como que se oferecendo à devoração. Ouve-se: o barulho dos carros na avenida movimentada; um ensaio de banda; meus passos leves no piso de madeira. Ouve-se: as palavras que teimam em se fazer dizer. Noto uma pequena imperfeição na parede, uma borda rachada no pilar. Homens que passaram por aqui em seus uniformes, que arrastavam escadas, cadeiras, estas mesas que vejo. Uma batida, o reboco que cai, o sair de fininho. Fica a borda rachada, o tijolo exposto que se oferece à devoração. Ao lado, se insinuando, o perder.

Poderia acordar e imediatamente esquecer. Mas quero a lembrança. Gravo o sonho, a voz dormida. “Sonho com a palavra, não com a imagem, sou um escritor”, diz ele no filme. Na casa antiga, as janelas se abrem de par em par. Faz frio, o vento entra intenso. No rodapé, as palavras. Não as consigo ler. Me deito no parquê. As letras tremem, cambiantes. Formam mesmo palavras? Aperto os olhos, as letras teimam em dançar. São mesmo letras? A escuridão agora se insinua dentro da sala. Toco o interruptor, nada acontece. As sombras crescem. É um sonho, penso. É sempre um sonho.

Reconheço-o de longe, a mesma face de tempos. Vem ao meu encontro, sorrio. Vem sobre a bicicleta, capacete na cabeça. Na beira do rio, conto. Me escuta. Olha impassível as ondas tranquilas. “O que eu gosto daqui é como a água é lisa. Daria para caminhar por sobre ela”. Ao longe, para além dos jet skis, diviso uma ilha. Na mesma noite, estou naquela ilha. O sol brilha e o rio se ilumina com desembaraço. O azul do céu orna o silêncio da água. Vejo: uma flor. Me agacho. Vejo: muitas flores. Insuspeitas, crescendo no arbusto, mais do que poderia contar. Sinto o perfume. As flores da casa antiga, em todas as cores. Pego algumas sementes, guardo no bolso. Sei: estou sonhando.

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